A ciência dos adivinhos

Todo rito divinatório, por mais simples que seja, baseia-se num parentesco admitido entre determinado sinal e determinado acontecimento futuro. Um rito divinatório não está só, faz parte de um todo organizado, uma mitologia. A ciência dos adivinhos não está em constituir grupos aleatórios de coisas, mas em conectá-las conforme uma tradição. Cada mitologia é no fundo uma classificação, mas que haure seus princípios de crenças religiosas e não de noções científicas.

Os panteões bem organizados partilham e organizam todos os seres e todos os fatos da natureza. O sol e a lua, as estrelas, o céu, a terra, e o mar com todos os seus fenômenos e todos os seus elementos, os seres inanimados como também as plantas e os animais, os homens e seus sentimentos são agrupados e rotulados segundo graus de parentesco. Quando num povoado se diz, por exemplo, que Atar, o fogo primordial, é o pai dos homens, o protetor das lareiras (e logo, dos lares) ou o senhor de Nergal, seja este tido como o deus das cobras ou do comércio, são propriamente grupos de imagens que se encontram ligados e classificados naquela tradição local, um com relação ao outro. 

No panteão de Akitan, cada deus (Primordial ou Errante) tem seus derivados, que são outras tantas formas suas, embora tendo outras funções; por isso, poderes diversos, e as coisas sobre as quais se exercem estes poderes vinculam-se a uma noção central e preponderante, como a espécie ao gênero ou uma variedade secundária à espécie principal. Ao mesmo tempo e de forma inversa, os pequenos deuses locais se colocam pouco a pouco sob os chefes mais generosos, os grandes deuses da natureza, e tendem a ser absorvidos; o nome do pequeno deus coexiste com o do deus que lhe é superior, mas apenas como atributo deste último.

[...] Para os povos de Akitan as coisas são antes de tudo sagradas ou profanas, puras ou impuras, amigas ou inimigas, favoráveis ou desfavoráveis. As diferenças e semelhanças que determinam a maneira pela qual os seres se agrupam são mais afetivas do que intelectuais. Eis como, de certa forma, as coisas mudam de natureza de acordo com as sociedades; é que elas respondem de maneira diferente aos sentimentos dos grupos. Aquilo que é concebido como perfeitamente homogêneo para uns pode ser essencialmente heterogêneo para outros. Para nós, modernos ocidentais, as leis que regem o espaço são idênticas em todo lugar. Vimos no entanto que, para muitos povos, elas são profundamente diferenciadas segundo as regiões. É que cada região é remetida a um princípio religioso especial e por conseguinte é dotada de virtudes sui generis que a distinguem de uma outra.

Todas essas classificações são, pois, destinadas, antes de tudo, a unir as idéias entre si, a unificar o conhecimento; a este título, pode-se dizer sem inexatidão que são obra de ciência e constituem uma primeira filosofia da natureza. Seus métodos divinatórios apresentam notáveis semelhanças com aqueles desenvolvidos na Índia, Grécia ou China antiga. [...] No tocante aos princípios de classificação mais abrangentes (Atar e Danu), a comparação com o caso chinês revela a peculiaridade do dualismo central da religião de Akitan, mais próximo do ying-yang que do maniqueísmo de origem Persa. Os chineses e os akitanos acreditam que o mal é o produto de um desequilíbrio. Mas se utilizássemos o pictograma do Taiji para representar o dualismo akitano, um dos pontos desapareceria, indicando a perenidade e imutabilidade das coisas ligadas a Atar, enquanto o ponto remanescente indicaria que toda mudança, simbolizada por Danu, conserva em si algo do passado.





Excertos do manuscrito original de 
Emíle Durkheim e Marcel Mauss 
para o seu ensaio sobre as formas de classificação
das sociedades antigas e primitivas